quinta-feira, 17 de abril de 2014

Um pouco de Brasil na porta de casa

 

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A longa história que narro aconteceu perto da minha casa, na Rua das Laranjeiras, em frente ao número 55. E mostra o nível de falência do Estado e de descrença da sociedade.

14h35 - Um menor (aparentemente com 12 ou 13 anos) está sentado ao lado de um poste cercado por três homens, duas senhoras e uma multidão em polvorosa. Os gritos variam do "Lincha!", "Dá paulada!", "Dá porrada!" ao "Quero vem alguém adotar essa peste!" (curioso que como uma frase infeliz dita nos meios de massa pode pulverizar e expressar o sentimento de uma parcela significativa da população. E como a Comunicação - em tese Social - virou aforismo de ultra-direita).

14h37 - Uma das senhoras alerta que não irá deixar ninguém bater no menor. Sagaz, afirma que quem agredi-lo pode responder por violência contra menor. Ou seja, a alternativa que usou para evitar o justiçamento e tentar convencer os "justiceiros" não se baseou no direito amplo que o menor possui, mas pelo fato de o agressor ser enquadrado criminalmente. Sob vaias e protestos, a população segue xingando, mas não o agride fisicamente nem o amarra ao poste.

14h40 - A história do roubo começa a se desenhar. Uma senhora caminhava em frente às Lojas Americanas (entupida de gente por causa da Páscoa) quando o menor tentou arrancar-lhe o cordão. Ao tentar fugir, um rapaz que estava próximo deu uma banda no assaltante que acabou rolando e se ralando no chão. Outros três menores conseguiram escapar.

14h42 - As pessoas começam a ligar para a polícia. Sem sucesso, afirmam. Inicia-se, então, uma série de alternativas que são logos descartadas.

1. Chama a Guarda Municipal (não adianta, eles não podem fazer nada)
2. Liga para o Conselho Tutelar (não tem ninguém porque é feriado de Semana Santa)
3. Chama o "DPOC" (em 14 anos no jornalismo, nunca ouvi falar disso). Pra mim, é sigla de doença pulmonar obstrutiva crônica. Talvez fosse DPCA.
4. Liga pra 190 (dizem que não tem previsão de quando vão mandar alguém)
5. "Gente, tem um carro do Bope passando!" (a população grita de euforia, mas a Hilux passa direto).

O jeito é esperar alguma viatura passar e, quem sabe, parar no local para levar menor e vítima à delegacia.

14h45 - 15h05 - Nestes 20 minutos, começa uma agonia que parece eterna. O menor segue sentado, sem ferimentos e sem também esboçar reações de medo ou preocupação. Coça a unha suja do pé, ajeita o short rubro-negro, olha pra vítima, olha para as pessoas, diz que não fez nada, que não tem nada com ele (De fato, ele não havia conseguido roubar o cordão e a senhora ainda havia recuperado o pingente de Nossa Senhora que havia caído. "Ela me abençoa", diz a senhora de forma serena).

Surgem então os mais variados discursos. Daquele assalto, as pessoas falam da Copa do Mundo, do Cabral, do Paes, do Pezão, da Rede Globo ("isso a Globo não mostra"), dos Black Blocs, do Garotinho, da igreja, das Olimpíadas, do goleiro Felipe, da corrupção, do mensalão, dos vândalos.

Algumas senhorinhas parecem ter pena do menor e tentam conversar com ele. Em vão. Ele não responde e apenas alega não ter feito nada. Sempre de cabeça baixa. Sempre colado no poste.

Uma outra senhora mais exaltada diz que vai votar no Obama e que não é brasileira (embora tenha um carioquêxxx da gema), mas argumenta(?) que o menor roubou porque se inspirou nos mensaleiros do PT. Detalhe: ela usava uma camisa do Brasil e alertava que a Seleção não ia ganhar a Copa porque havia feito uma simpatia e ganharia um bom dinheiro caso a mandinga se confirmasse.

15h07 - Finalmente uma viatura da PM chega. Dois policiais - um oficial e um cabo - descem do carro e nem se aproximam do menor. Conversam rapidamente com a vítima e o rapaz que havia rasteirado o assaltante. Um deles fala ao telefone (um Samsung Galaxy 4) e pede que outra viatura chegue ao local. A vítima, já cansada, diz que quer ir embora pois sua neta está esperando. A essa hora, o trânsito na Rua das Laranjeiras já está engarrafado e os motoristas passam gritando. "Filha da puuuuu", "tem que mataaaa", etc. A senhora eleitora do Obama teima em defender o presidente americano como o melhor para o Brasil. E promete fazer mais mandingas de quem discorda dela.

15h20 - Agora, a cena mais inusitada: os três menores que estavam com o assaltante voltam para se solidarizar com o colega rendido. Um deles tem marcado (provavelmente com gilete ou estilete) um CV no peito esquerdo. Eles afirmam: "tudo vai ficar bem", "você já vai sair dessa", "minha tia vai te visitar". A população reage exigindo que eles saiam. Dois deles atravessam a rua e um fala baixo: "um dia vocês também vão ter o cordão roubado". O terceiro tenta deixar uma camisa para o colega detido, mas a PM chega e o imobiliza. Depois o solta e manda ele ir embora.

15h30 - Finalmente a outra viatura chega. Vítima (extenuada), o rapaz que aplicara a banda no menor (com gelo no antebraço) e o assaltante (indiferente) entram no carro.

A população de dispersa.

Nessa história toda, alguns fatos me chamaram muito a atenção. O mais grave é que nosso Estado só não decreta falência de suas instituições porque não haveria quem as recuperasse. A sociedade não está preparada para qualquer mudança porque está entorpecida com tanto descaso. Um dos PMs falava o tempo todo: a burocracia impede que algo seja feito contra o menor. Boa parte da população que estava no local vociferava dizendo que levar o garoto preso não adiantaria nada e clamava pelo justiçamento, pelo linchamento. As éticas humana, kantiana, cristã escorreram pelo ralo da barbárie faz tempo.

Nossa sociedade está envernizada pelo saco cheio superlativizado, pelo sentimento de que "não adianta fazer mais nada" e por uma compreensão da impunidade. Sim, não há mais sensação de impunidade, ela já corroeu nosso senso de cidadania e coletividade de tal forma que os valores não estão mais invertidos, eles ficaram definidos do lado errado e ponto.

Tá faltando fôlego, disposição para bons debates e propostas, soluções.

Tá sobrando arroto de ódio e descrença.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

O rojão silencioso do (e no) midiativismo


Discordo de quem afirma que a liberdade de imprensa foi a principal vítima no ataque ao Santiago. Estamos acompanhando a cobertura da imprensa (muito boa, por sinal) e observando que os fatos têm sido apurados e noticiados numa velocidade satisfatória.

Creio que quem se saiu mal mesmo neste episódio, e precisará rever urgentemente seu papel, discurso e, ...principalmente, ação política, é o midiativismo. A Mídia Ninja e suas derivações lançaram um rojão em si próprias quando preferiram o silêncio, ou a falta de um posicionamento mais definido, depois do incidente na Central do Brasil.

Inovadores ao cumprirem a função de mídia das multidões, alertando sobre os excessos do Estado nas manifestações, rapidamente caíram no descrédito quando usaram o "argumento da compreensão" das ações dos Black Blocs. A tal compreensão rimou com absolvição, num momento em que a sociedade criticou as ações violentas, saques, etc.

Um médico, quando pesquisa uma doença, faz o possível para erradicá-la. Não foi assim que os midiativistas se comportaram. Preferiram apenas observar a evolução do vandalismo, o recrudescimento da violência, etc.

O segundo motivo de descrédito teve seu estopim no ataque ao Santiago. Antes o midiativismo criticava a imprensa (golpista, manipuladora, concentrada, monopolista). Tinha certa razão em tecer as críticas. Mas agora pecaram (e feio) quando simplesmente deixaram o debate. Estão agindo da mesma forma que o Estado quando uma crise cai no seu colo. Preferem dizer que nada viram, nada sabem. Preferem a omissão.

Ao se calarem sobre o rojão que atingiu o Santiago, a impressão que fica é que, para os midiativistas, a vida dele vale menos que a de um Black Bloc. Aqueles que mais se orgulhavam em dizer que eram os vigilantes das manifestações, com seus Iphones concetados e suas transmissões streamadas, são agora os mais omissos.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Não podemos depender da sorte

A polícia do Rio - civil e militar - já deu inúmeras amostras de que sabe atuar com inteligência. O traficante Nem foi preso sem que um tiro fosse disparado. A ocupação do Complexo do Alemão levantou a autoestima dos cariocas. A política de implantação das UPPs é respaldada pela sociedade e pela mídia, ainda que esteja longe de cumprir a missão primordial de estabelecer a inclusão e cidadania a quem é vizinho e refém do tráfico.

Mas é a partir dos métodos de operação que ficam evidentes os principais erros cometidos pela polícia. O equívoco mais recente foi a investida aérea dos policiais contra o traficante Matemático na favela da Coréia, em Senador Camará. Uma ação que contou como nunca com o risco e, como quase sempre, com o silêncio preocupante dos moradores e o escamoteamento das autoridades. 


A operação da polícia na Coréia não pode ser considerada eficaz porque não houve vítimas. A tragédia não se deu por pura sorte. Perseguições são vencidas porque sempre há descontrole, imperícia e nervosismo de quem está fugindo. Quem carrega o distintivo está ali, no calor da operação, para proteger a população e, porque não dizer, proteger-se. Só que tiros em varredura, disparados em áreas densamente habitadas, não rimam com estratégia.

Também não serve como argumento em favor da ação policial o fato de que nenhum morador fez denúncias à Corregedoria da Polícia. Dá pra imaginar uma comunidade feliz por ter suas casas perfuradas, seja por quem for? Estamos falando de uma favela em Senador Camará, na Zona Oeste do Rio, área conhecida pela distância dos holofotes vigilantes da imprensa, pelo reduto das milícias. Os moradores não denunciaram pela falta de confiança que possuem no Estado, não porque lhes faltou vontade. 

O discurso contrário aos direitos humanos é contraditório porque defende a ação repressora do Estado como remédio para curar suas próprias falhas. Como se a solução para combater a violência seria aplicando meios mais violentos. 

Não se deve dar ao Estado o direito de decidir quem vive e quem morre. O criminoso adota essa escolha e por isso ele é criminoso. O que é preciso discutir é como qualificar melhor nossa segurança para minorar as escolhas de quem age contra a lei. Sendo assim, a alegação de que 'o pessoal direitos humanos defende o traficante' é torta.

Nas redes sociais, é comum ler a frase 'bandido bom é bandido morto' como justificativa. Curioso, para não dizer preocupante, é que o autor da expressão - o ex-deputado estadual Sivuca - integrou um grupo de delegados conhecidos como '12 Homens de Ouro', responsável por fazer uma 'limpeza social' (palavras dele) nas décadas de 60 e 70, em plena ditadura militar.

Houve quem dissesse (e me incluo nesse caso) que se operação fosse na Zona Sul, certamente a polícia agiria de outra forma. Ainda que seja verdade, o que não pode ser decretado e validado é a democratização do tiro, como se a ação em uma favela se justifica pelo local que é.

Nossa polícia tem graves problemas de estrutura. Na Civil, por exemplo, o déficit de agentes é um abismo: 11 mil policiais para uma população de 16 milhões de habitantes. É um policial para cada 1.455 moradores. Nossos peritos criminais recebem o pior salário do País. A PM do Rio foi apontada recentemente pelo Ministério da Justiça como a mais corrupta.

Muitos apoiam a execução de Matemático mesmo que a população tenha sido colocada em risco. O problema é que, com base no mesmo respaldo, o do atira primeiro e nem sempre pergunta depois, João Roberto, Hélio Ribeiro e Juan tiveram suas vidas interrompidas.

O primeiro tinha três anos e estava dentro de um carro; 

O segundo usava uma furadeira quando foi morto;

O terceiro, de 11 anos, chegou a ter o corpo escondido.

Eles não tiveram a mesma sorte que os moradores da Coréia.

sábado, 13 de abril de 2013

João Kleber e a amnésia ética

Outubro de 2005. Ministério Público federal e ONGs movem uma ação civil pública contra a RedeTV!, que exibia o programa 'Tardes Quentes'. O programa, apresentado por João Kléber, foi denunciado por violação aos direitos humanos, principalmente contra homossexuais.

Na ocasião, o ‘Tardes Quentes’ liderava outra audiência, a de denúncias da campanha ‘Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania’. A iniciativa, capitaneada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal (bem mais atuante do que nos atuais tempos ‘felicianescos’), recebia reclamações de telespectadores contra o que consideravam apelativo na tevê aberta.
Por quatro meses, o ‘Tardes Quentes’ esteve no topo dos mais grotescos da campanha. “Suspeita de fraude”, “exposição das pessoas ao ridículo” e “horário impróprio” eram as principais frases citadas pelos 144 denunciantes.

A ação das entidades civis e do MPF deu certo. Numa decisão inédita (e inimaginável, já que é notório o lobby das empresas comerciais de comunicação), a juíza Rosana Ferri Vidor, da 2ª Vara Federal de São Paulo, deferiu liminar suspendendo a exibição do programa por 60 dias.

Em seu despacho, a magistrada é taxativa. 

“Tal pedido não implica a interferência na liberdade de expressão da emissora ou dos produtores do referido programa, uma vez que as liberdades individuais devem ser exercidas por cada um de modo a não interferir na esfera de liberdade do outro. São como linhas paralelas, que devem seguir sem se atingirem. A partir do momento em que uma fere a outra, ou seja, que um indivíduo usa de sua liberdade de modo que interfira na esfera dos direitos dos outros, havendo provocação, o Estado juiz deve interferir”.
Com a decisão, ‘Tardes Quentes’ só poderia ser transmitido no dia 5 de janeiro de 2006 e sempre a partir das 23h30min.

Surgiu então um Noites Quentes? Nada disso. A RedeTV! descumpriu a decisão. Resultado: a Anatel e Justiça Federal suspenderam as transmissões. Os prejuízos da emissora foram astronômicos, tão indigestos quanto suas pegadinhas e mais do que os R$ 135 mil de salário que eram pagos a João Kléber naquela época.

Colocada contra a parede pelos anunciantes, a RedeTV! teve que assinar um acordo, custear e veicular – durante 30 dias úteis – uma série de programas sobre direitos humanos. Foram investidos (sim, para a sociedade é investimento) R$ 600 mil, entre multa e produção dos programas. Em contrapartida, os pedidos de cassação da emissora e indenização por danos morais foram retirados. 

Foi assim que o 'Direitos de Resposta' foi ao ar. Um trecho dele pode ser assistido abaixo:

http://www.youtube.com/watch?v=rkmQogamSyk

Pela primeira vez na história, uma emissora teve sua transmissão cortada por violar os direitos humanos. Uma resposta da sociedade à frase clichê do “não gosta do programa, muda de canal”. A sociedade se apropriou do que é dela porque houve desrespeito contra ela.

Usar o controle remoto como muitos alegam é, de fato, uma tarefa simples. O problema é a falta de opções. 

Ou você assiste cultos intermináveis, e cenas de intolerância religiosa, ou compra jóias por telefone. No mesmo cardápio, tem o jornalismo policialesco, o jornalismo travestido de entretenimento e vice-versa. Tudo ao gosto do freguês.

Some tudo isso a um problema crônico da ética: ela tem memória curta. 

Passados quase oito anos, João Kléber ressurge na mesma emissora e dá início a uma série de programas do mesmo estilo de antes: cenário, testes de fidelidade, apelação, menosprezo, etc. 

Diz no site da RedeTV! sobre um dos programas de João Kleber: "de forma bem humorada, leve e descontraída, o programa apresenta casos reais de pessoas que enfrentam conflitos de relacionamento e outras dificuldades cotidianas." (grifo meu).

Ou seja, os conflitos familiares, conjugais, sociais voltam a ser tratados como piada, sarcasmo, desdém. 

Dane-se o respeito ao telespectador sobre o que vamos falar. Vamos falar e pronto. Quem sabe repetir a dose de anos atrás.

O senso comum, mais uma vez, derrubou o bom senso em nome dos parcos números do Ibope. 

E a ética voltou a sofrer de amnésia.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Avô e neto

Reportar é testemunhar encontros.
Agendados, triviais, solenes, inesperados.

Surpreendentes.

Reportar é observar os paradoxos, apontar o contraditório. É presenciar realidades tão diferentes se imbricarem.

A plateia que assiste à audiência esboça diferentes reações. 
Na primeira fila, todos anotam, teclam, cochicham, gravam as cenas de um julgamento que parece não ter fim.

Contam as horas para seguir suas vidas enquanto o destino de uma está sendo selado.
Tal como um big brother ou um panóptico, a vigilância sobre a figura - o réu - é constante. Um close, um clique em cada expressão diferente. 

Não vale a inércia. Vale flagrar o sorriso. 

Sorriso? Como pode o homem sorrir? De quê graceja aquele que transformou em desgraça o direito mais elementar de tantos outros?

As razões do regozijo estão na segunda fila.

Arisco, falante e manhoso, um rebento de dois aninhos destoa do rito silencioso da audiência. Um misto de choro, alegria, espanto e cansaço salta do pequeno que não faz ideia do que está acontecendo, do que aconteceu nem do que vai acontecer.

De longe, ele avista um homem sentado, olhar quase letárgico, braços entrecruzados que tentam esconder as algemas. Nas costas dele, dezenas de condenações e penas que dariam umas duas encarnações, no mínimo.

"Vovô!", ele grita.

"Vovô, vovô, vovô!", ele repete. Sem a reação tão desejada, o menino choraminga. A mãe tenta acalmar. Em vão.

O vidro separa o público do plenário. O avô não responde. O som de fora não ressoa lá dentro. E cada sílaba proferida ali dentro é mais um passo que vai definir o futuro daquele homem. 

Genocida, criminoso, traficante.

E avô. 

Depois de mais de 10 horas de julgamento, a sentença é lida.

Nas falas do magistrado, fica claro que a Justiça é o retrato da vida. Ela não muda os fatos, ela constata os equívocos. É o homem quem modifica as coisas. 

O juiz afirma que esperar algo que não fosse a condenação seria o mesmo que ver um pássaro construir seu ninho no fundo do mar.

E o homem é exemplarmente condenado.

Nessa hora, o menino já estava dormindo.

A vida do avô dele já está traçada. Para o bem de todos.

A vida do menino ainda não tem qualquer traço.

Que seja para o bem dele.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Chorão e Santa Maria: já não nos bastam os fatos?

A morte de um ídolo, de uma figura pública, ou mesmo de um anônimo, eriça a indústria da comunicação e a obriga a ir além dos fatos que cercam a causa mortis do indivíduo. É preciso sempre mais para o sistema midiático. Faz-se necessário testar e chocar a audiência a cada instante, a cada frame. E as doses que nutrem a busca pelo grotesco possuem essências bizarras que minam o bom senso.

A morte do vocalista Chorão, da banda Charlie Brown Jr, é mais um episódio no qual os limites do que divulgar poderiam ser aplicados ou, ao menos, serem discutidos. No entanto, mais uma vez, foram deixados de lado.

Em portais de notícias e nas redes sociais, fotos do corpo do cantor estendido no chão e imagens do interior do apartamento do músico foram publicadas, republicadas, tratadas e disseminadas. Alguns acontecimentos que rondam a notícia ganharam uma importância circunstancial que são explorados de forma desproporcional, numa tentativa de naturaliza-los.

Não é a primeira vez em que o estupro à intimidade foi cometido.

Na tragédia de Santa Maria, não faltaram posts e sequências de fotos dos corpos carbonizados e amontoados na boate Kiss. As imagens que pontuaram a internet chegaram a ser divulgadas em canais de tevê.

Nas redes, a divulgação acaba sendo inevitável porque não há um sistema simples de comunicação baseado em emissores e receptores. Todos produzem conteúdo. Os filtros do que pode - ou não - ser emitido são suaves e pouco se manifestam. E mais: quando tais filtros surgem, sempre há alternativas que possibilitam a emissão das mensagens. Pedofilia e pornografia são temas proibidos no Youtube, por exemplo. Nem por isso deixam de preencher o universo digital.

Já uma emissora trabalha com critérios editoriais e senso crítico. Procura considerar a ética algo prioritário. Pena que, em alguns casos, o que deveria ser regra não passa de utopia.

Quer outro episódio? Na cobertura da morte do cinegrafista Gelson Domingos, da TV Bandeirantes, no fim de 2011, algumas emissoras chegaram a destacar os momentos finais de agonia do repórter cinematográfico. Não bastou a imagem dele sendo atingido. Um corte na edição no exato momento em que a bala o perfura já deixaria claro seu sofrimento. Porém, foi preciso(?) mostrar o detalhe do corpo estrebuchando até não resistir mais.

Dispensável? Totalmente. Os fatos passaram a ser menos importantes do que o impacto provocado por eles.

Não há argumento jornalístico que justifique a superexposição dos casos de Gelson, Santa Maria e, agora, de Chorão.

Vivemos numa era na qual a informação se propaga em velocidade instantânea, os caminhos por onde a mensagem corre são incontáveis, desconhecidos e incontroláveis. O conteúdo da mensagem pode ser totalmente alterado, individualizado, customizado. E ainda: onde a exposição ganhou ares superdimensionados.

Apareço, logo existo.

Neste cenário, é comum o jornalismo respirar ares muito mais romanescos e macabros do que propriamente informativos.

A cultura midiática atravessa as fronteiras do real e, por diversas vezes, fica debruçada sobre o espetáculo, se alimentando e ruminando o instante do choque, da ruptura. Por alguns instantes, tais episódios vão irromper na vida cotidiana e burocrática dos públicos e oferecer uma ligeira sensação de novidade.

Alguns classificam como sensacionalismo, outros consideram que qualquer limite cheira à censura e a divulgação é válida. Fato é que todos absorvem a mensagem. E quanto mais inspiram, mais anestesiados ficam, até considerarem a perda de uma vida um fato comum.

As redes sociais são mediadoras de diferentes representações, correntes de pensamento e visões do mundo. É uma ferramenta que garante a todos a liberdade para que postem praticamente tudo o que quiserem. Mas no momento em que detalhes da morte de alguém ganham tamanha repercussão e necessidade de divulgação, fica claro que o respeito ao luto, ao sofrimento alheio, já não existe mais.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Difamação turbinada


Tema que passa em branco nas redações – e diz respeito diretamente ao trabalho da imprensa – o crime de difamação no Brasil pode ser penalizado com, no mínimo, dois anos de prisão. Para tal, basta que o projeto de reforma do Código Penal seja aprovado. Hoje, a proposta se encontra no Senado.

Quem assina o texto é o senador José Sarney.

Vamos fazer uma comparação? A Lei de Imprensa, entulho autoritário editado em plena ditadura militar, revogado em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal, previa pena de até três anos de prisão para o crime de difamação, um a menos do que a máxima prevista no texto que hoje circula pelos corredores do Congresso.

O agravamento da pena, sugerido no projeto, segue na contramão dos debates realizados por organizações civis que analisam e diagnosticam a Comunicação na América Latina. Fóruns de discussão virtuais, seminários e audiências públicas têm pontuado a necessidade da descriminalização, responsável por episódios de restrição à liberdade de expressão e condenação de jornalistas.

Particularmente, creio que os chamados “delitos contra a honra” deveriam ser totalmente descriminalizados. Discutir a injúria, calúnia e a difamação no campo criminal é a prova de que os governantes temem a imprensa, se sentem incomodados, desconfortáveis. Justamente quando o papel primário – e essencial – da imprensa é formar, informar, incomodar, inconformar, transformar.

Por outro lado – e este é um ponto também ignorado pela mídia – há que se ampliar o debate em torno do direito de resposta. Depois que a Lei de Imprensa foi extinta não dispomos de uma regulamentação que dê conforto aos cidadãos prejudicados por algum veículo. Nem mesmo o resguardo aos meios de comunicação que ficam reféns da decisão de algum magistrado que mensure valores estratosféricos ao deferir alguma indenização. Não há regras nos dois casos. Não há qualquer regra.

Para os tubarões da grande mídia, valores indenizatórios quase sempre têm peso diminuto em seu orçamento e são pouco divulgados (ou você crê que um veículo faça um mea culpa de que foi obrigado a indenizar alguém?). No entanto, para a imprensa regional, das pequenas cidades, uma indenização pode custar a vida daquele jornal ou emissora.

A Lei de Imprensa foi varrida. Sua extinção, no entanto, não ofereceu melhorias nem elevou o padrão ético da mídia. Pelo contrário. A julgar pelo que está sendo discutido no Senado sobre o crime de difamação, ainda há muito entulho a ser removido.