A longa história que narro aconteceu perto da minha casa, na Rua das Laranjeiras, em frente ao número 55. E mostra o nível de falência do Estado e de descrença da sociedade.
14h35 - Um menor (aparentemente com 12 ou 13 anos) está sentado ao lado de um poste cercado por três homens, duas senhoras e uma multidão em polvorosa. Os gritos variam do "Lincha!", "Dá paulada!", "Dá porrada!" ao "Quero vem alguém adotar essa peste!" (curioso que como uma frase infeliz dita nos meios de massa pode pulverizar e expressar o sentimento de uma parcela significativa da população. E como a Comunicação - em tese Social - virou aforismo de ultra-direita).
14h37 - Uma das senhoras alerta que não irá deixar ninguém bater no menor. Sagaz, afirma que quem agredi-lo pode responder por violência contra menor. Ou seja, a alternativa que usou para evitar o justiçamento e tentar convencer os "justiceiros" não se baseou no direito amplo que o menor possui, mas pelo fato de o agressor ser enquadrado criminalmente. Sob vaias e protestos, a população segue xingando, mas não o agride fisicamente nem o amarra ao poste.
14h40 - A história do roubo começa a se desenhar. Uma senhora caminhava em frente às Lojas Americanas (entupida de gente por causa da Páscoa) quando o menor tentou arrancar-lhe o cordão. Ao tentar fugir, um rapaz que estava próximo deu uma banda no assaltante que acabou rolando e se ralando no chão. Outros três menores conseguiram escapar.
14h42 - As pessoas começam a ligar para a polícia. Sem sucesso, afirmam. Inicia-se, então, uma série de alternativas que são logos descartadas.
1. Chama a Guarda Municipal (não adianta, eles não podem fazer nada)
2. Liga para o Conselho Tutelar (não tem ninguém porque é feriado de Semana Santa)
3. Chama o "DPOC" (em 14 anos no jornalismo, nunca ouvi falar disso). Pra mim, é sigla de doença pulmonar obstrutiva crônica. Talvez fosse DPCA.
4. Liga pra 190 (dizem que não tem previsão de quando vão mandar alguém)
5. "Gente, tem um carro do Bope passando!" (a população grita de euforia, mas a Hilux passa direto).
O jeito é esperar alguma viatura passar e, quem sabe, parar no local para levar menor e vítima à delegacia.
14h45 - 15h05 - Nestes 20 minutos, começa uma agonia que parece eterna. O menor segue sentado, sem ferimentos e sem também esboçar reações de medo ou preocupação. Coça a unha suja do pé, ajeita o short rubro-negro, olha pra vítima, olha para as pessoas, diz que não fez nada, que não tem nada com ele (De fato, ele não havia conseguido roubar o cordão e a senhora ainda havia recuperado o pingente de Nossa Senhora que havia caído. "Ela me abençoa", diz a senhora de forma serena).
Surgem então os mais variados discursos. Daquele assalto, as pessoas falam da Copa do Mundo, do Cabral, do Paes, do Pezão, da Rede Globo ("isso a Globo não mostra"), dos Black Blocs, do Garotinho, da igreja, das Olimpíadas, do goleiro Felipe, da corrupção, do mensalão, dos vândalos.
Algumas senhorinhas parecem ter pena do menor e tentam conversar com ele. Em vão. Ele não responde e apenas alega não ter feito nada. Sempre de cabeça baixa. Sempre colado no poste.
Uma outra senhora mais exaltada diz que vai votar no Obama e que não é brasileira (embora tenha um carioquêxxx da gema), mas argumenta(?) que o menor roubou porque se inspirou nos mensaleiros do PT. Detalhe: ela usava uma camisa do Brasil e alertava que a Seleção não ia ganhar a Copa porque havia feito uma simpatia e ganharia um bom dinheiro caso a mandinga se confirmasse.
15h07 - Finalmente uma viatura da PM chega. Dois policiais - um oficial e um cabo - descem do carro e nem se aproximam do menor. Conversam rapidamente com a vítima e o rapaz que havia rasteirado o assaltante. Um deles fala ao telefone (um Samsung Galaxy 4) e pede que outra viatura chegue ao local. A vítima, já cansada, diz que quer ir embora pois sua neta está esperando. A essa hora, o trânsito na Rua das Laranjeiras já está engarrafado e os motoristas passam gritando. "Filha da puuuuu", "tem que mataaaa", etc. A senhora eleitora do Obama teima em defender o presidente americano como o melhor para o Brasil. E promete fazer mais mandingas de quem discorda dela.
15h20 - Agora, a cena mais inusitada: os três menores que estavam com o assaltante voltam para se solidarizar com o colega rendido. Um deles tem marcado (provavelmente com gilete ou estilete) um CV no peito esquerdo. Eles afirmam: "tudo vai ficar bem", "você já vai sair dessa", "minha tia vai te visitar". A população reage exigindo que eles saiam. Dois deles atravessam a rua e um fala baixo: "um dia vocês também vão ter o cordão roubado". O terceiro tenta deixar uma camisa para o colega detido, mas a PM chega e o imobiliza. Depois o solta e manda ele ir embora.
15h30 - Finalmente a outra viatura chega. Vítima (extenuada), o rapaz que aplicara a banda no menor (com gelo no antebraço) e o assaltante (indiferente) entram no carro.
A população de dispersa.
Nessa história toda, alguns fatos me chamaram muito a atenção. O mais grave é que nosso Estado só não decreta falência de suas instituições porque não haveria quem as recuperasse. A sociedade não está preparada para qualquer mudança porque está entorpecida com tanto descaso. Um dos PMs falava o tempo todo: a burocracia impede que algo seja feito contra o menor. Boa parte da população que estava no local vociferava dizendo que levar o garoto preso não adiantaria nada e clamava pelo justiçamento, pelo linchamento. As éticas humana, kantiana, cristã escorreram pelo ralo da barbárie faz tempo.
Nossa sociedade está envernizada pelo saco cheio superlativizado, pelo sentimento de que "não adianta fazer mais nada" e por uma compreensão da impunidade. Sim, não há mais sensação de impunidade, ela já corroeu nosso senso de cidadania e coletividade de tal forma que os valores não estão mais invertidos, eles ficaram definidos do lado errado e ponto.
Tá faltando fôlego, disposição para bons debates e propostas, soluções.
Tá sobrando arroto de ódio e descrença.
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