quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

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Ele é um rapaz bipolar que acredita piamente no amor de sua mulher. Insegura, ela pediu para se afastar dele - e procurou os meios legais para tal.

Ele é um americano realmente otimista, sincero, e que tenta retomar o controle da própria vida. Mas ao contrário de histórias clichês do cinema, suas sequelas mentais não se deram pelo 11 de setembro ou por ter invadido o Iraque.

Ele é Pat, rapaz vivido pelo ator Bradley Cooper, protagonista de O lado bom da vida.

O filme concorreu a oito Oscars. Levou apenas um, o de melhor atriz, para Jennifer Lawrence. A personagem que ela interpreta, Tiffany, é compulsiva por sexo. Uma jovem igualmente complicada.

Adicione ao mesmo enredo o (sempre) excelente Robert de Niro, que sofre de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Como pai de Pat, ele possui incontáveis manias, dificuldades para lidar com as dificuldades. Num gesto de amor, usa o objeto do próprio transtorno – os jogos de futebol americano – para se aproximar do filho.

O filme é uma comédia romântica. Mas calma, antes de torcer o nariz, posso garantir que você vai gostar.

Ao contrário da falta de originalidade sempre imbricada às comédias glicosadas de Hollywood, o filme adota outro caminho e faz pinceladas firmes sobre nosso estresse, nossa impulsividade, barreiras que nos impedem de compreender e suportar as intempéries da vida.

Talvez seja a primeira obra cujo protagonista é assumidamente bipolar. Um fato positivo já que o transtorno precisa ser debatido.

Mas, infelizmente, o termo bipolar acaba sendo banalizado, virou modinha.

Em posts nas redes sociais e comentários cotidianos, torna-se cada vez mais comum as pessoas se autointitularem bipolares.

Pode ser uma forma de demonstrar que ninguém é 100% normal, de tirar sarro com o problema.


Só que ser bipolar não é nada cult.

Uma rápida e despretensiosa fuçada no site da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)* mostra que o transtorno atinge 2,2% da população. A bipolaridade exige diagnóstico preciso e tratamento adequado.

Uma crise bipolar não é uma simples mudança de humor. De repente, passou a ser usual dizer que a pessoa "de lua" é, na verdade, bipolar.
Não é verdade.

Para se ter uma ideia da gravidade do transtorno, a bipolaridade é a doença mental que mais mata por suicídio: 15% dos doentes. A expectativa de vida de homens bipolares é 13 anos menor.

E ao invés de ser explicado, o termo é banalizado. A pessoa é flamenguista, católica não-praticante, tem conta no Twitter,gosta de comida japonesa e é bipolar. Como se fosse simples assim.

"Estar triste é uma coisa, estar deprimido e não conseguir sair de casa é outra", diz a psiquiatra Ângela Scippa, presidente da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar, em entrevista ao site da ABP.

O lado bom da vida trata de maneira divertida e - principalmente - emocionante a realidade das doenças contemporâneas que atingem muitas famílias. Doenças que incidem na mente, que recaem pelo resto do corpo, que mudam nosso comportamento e o de quem nos cerca, num contágio aparentemente imperceptível, mas que se manifesta de forma aguda.

São as famosas doenças do estresse.

Es-tres-se. Desagradável até para separar suas sílabas.

Palavra que deve ter sido foi inventada antes do problema.

Quando surgiu, todo mundo se estressou.

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*www.abp.org.br

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Uma escola chamada museu

Autoretrato, de Gustave Courbet

Diante de um enorme quadro de Gustave Courbet, num dos corredores do Museu d’Orsay, sete alunos observavam atentos os ensinamentos da professora.

As crianças não tinham mais que oito anos e respondiam em uníssono o que a educadora perguntava.

Não entendo francês, mas percebi que ela apontava para diferentes pontos do quadro do pintor realista e todos assentiam.

De vez em quando, algum menino se dispersava e fazia uma traquinagem. Um puxava a corda que separa a obra dos visitantes, outro cochichava no ouvido de um coleguinha.

Nada assustador. Com o mesmo tom que ensinava, a professora repreendia os mais peraltas.

Oito anos... Etapa da vida onde o limite parece não existir, o que contrasta com os apelos de pais e professores que rogam por sua onipresença. 

Nessa idade, nos tornamos um vocativo teimoso. É o “Para, Zezinho!”, o “Fica quieto, Joãozinho!” e por aí vai. Pela primeira vez, entendemos que quando dizem nosso nome completo (com todas as letras e fonemas metricamente articulados) é porque boa coisa não fizemos segundo os mais velhos, aqueles chatos, bobos e feios.

Mas voltando ao jogral digno de obra de arte, os alunos pareciam ser de uma escola pública (trajes simples) e de origem humilde (havia crianças de diferentes etnias).

Aquelas crianças francesas – privilegiadas desde o nascimento – poderiam passear pelo d’Orsay, Louvre e brincar até dizer chega em algum parque parisiense. Quem sabe na Eurodisney.

Cenário ilustrado, a comparação com nossa educação foi inevitável.

Ao relembrar meus passeios escolares de infância, se enumerar as excursões a museus ou memoriais não dá para encher os dedos da minha mão.

E olha que temos vários locais: CCBB, MHN, MNBA, MAM. Isso sem falar os que não têm sigla.

A programação externa das escolas em que estudei incluía quase sempre um clube, uma fazenda, uma colônia de férias distante. Claro que adorava por ser uma diversão, diferente de uma aula insossa e inútil de Moral e Cívica, por exemplo, que se resumia a um decoreba sobre quais são os direitos e deveres dos cidadãos.

Culpa dos professores? Muito pouco.

Culpa da escola? Talvez.

Culpa, sim, de um modelo educacional arcaico, pouco lúdico e que não estimula a criatividade, o conhecimento amplo, transdisciplinar e humanístico. Nosso sistema é considerado o segundo pior do mundo*

Há adestramento demais de alunos e preparação de menos de educandos, citando termo do mestre Paulo Freire.

Nossos abnegados professores não são capacitados – nem estimulados – a se reciclar através de cursos e outras atividades. Até bem pouco tempo atrás vivíamos sob a ditadura da aprovação automática.

Desestimulados, com baixo salário e péssimas condições de trabalho, o professor não tem tempo para ampliar seu leque de conhecimento e oferecer aulas e atividades mais interessantes. Sua rotina? Dá dezenas de aulas para ter uma renda minimamente digna, mora longe da escola, precisa corrigir trocentas provas. 

Em muitas instituições públicas, precisa cumprir uma taxa de aprovação. É uma obrigação velada, constrangedora, mas presente. Periga ser transferido para uma unidade mais distante, como forma de castigo, se não rezar a cartilha do passar de ano a qualquer custo.

Quando professores daqui vão com alunos para algum passeio escolar em um museu, se tornam muito mais domadores de ferinhas do que interlocutores de aprendizagem.

No d’Orsay, a alguns metros dos estudantes que contemplavam Courbet, uma turista tirava foto (com flash) da pintura mais famosa de Van Gogh.

No local, há avisos espalhados proibindo que fotos sejam tiradas, o que dirá com flash.

Alunos mal preparados se tornam cidadãos sem crítica e - principalmente - autocrítica. 


* http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/brasil-tem-2a-pior-educacao-em-ranking-global-da-economist

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Seedorf: choro e escolhas


Foto: (AGIF/BFR)


Todo torcedor carioca, brasileiro mesmo, se encanta com as atitudes, a humildade, e claro, com o futebol do surinamês Clarence Seedorf.

Como jogador, esbanja um estilo clássico, limpo, preciso, sempre bem cadenciado. 


Como atleta, é um líder, alguém realizado, boa praça, de português fluente, que veste a camisa alvinegra com orgulho. 


Tem mais classe e mentalidade do que muitos novatos - ou mesmo boleiros graduados - por aí.


Aos 36 anos, Seedorf caminha para encerrar a carreira de forma digna. É o veterano em melhor forma no futebol brasileiro.


Depois de cinco rodadas da intragável Taça Guanabara, o jogador que foi quatro vezes campeão da Liga dos Campeões da Europa e tricampeão mundial de clubes já se viu enfrentando as diminutas equipes do Macaé e do Audax.


Neste domingo, Seedorf conseguiu um feito inédito em sua carreira: marcar três gols em uma só partida. 

O ar de soberba, a aura da marotagem, da picardia, comum em muitos goleadores, passou longe do Moacyrzão.


Ali estava um Seedorf agradecendo aos companheiros que o deixaram bater os pênaltis. Um Seedorf guerreiro.


Um guerreiro que começou a chorar depois de dedicar a noite inesquecível à avó que falecera há dez dias.

No jogo do meio de semana, em Moça Bonita, o ônibus que levava a equipe do Botafogo teve que encarar uma triste realidade. 


À beira da pista da Avenida Brasil, perambulavam dezenas de dependentes de crack. Segundo o portal Lancenet!, um deles vestia o uniforme alvinegro. E logo a 10, a camisa de Seedorf.

Seedorf viu a cena e lamentou. Sabe da responsabilidade que carrega como ídolo de uma torcida. 


Dedicou a vida ao esporte.


Fez as escolhas que achou certas. 


O botafoguense da Avenida Brasil provavelmente nem viu o ônibus do seu time. 


Só estava ali frenético à espera do próximo cachimbo.


Será que ele teve escolha?


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Marilene e o sonho de cruzar as pernas




Ela fica (sempre) sentada. 

Ocupa dois do velho e surrado sofá de três lugares. 


Suas roupas lembram a de uma evangélica neo-petencostal, daquelas típicas do interior. 


O que me espanta em Marilene – e não teria como ser diferente – é seu tamanho. É enorme. São 190 quilos distribuídos de forma irregular numa mulher que convive com a depressão, não sabe o que é ser feliz.


Suas pernas são grossas como um tronco de árvore, escuras como a casca de um aipim. “Tive erisipela”, justifica. A saia é longa, mas não cobre as feridas na canela, provocadas por não aguentar o próprio peso. 


A blusa – vermelha – ainda a deixa mais gorda. 


O cabelo, preso cuidadosamente, parece oleoso. 


O rabo de cavalo deixa seu rosto mais cheio – e sua aparência ainda mais, mais gorda. 


Quase não há maquiagem para enfeitar seu rosto simples, mas cheio de curvas. A papada é imensa e cobre o pescoço. As únicas coisas que ela tem de pequenas, contrastando com suas formas alongadas, são as orelhas.


Chego para a entrevista depois do horário marcado. Ela permanece intacta, tal como a estátua de um Buda. O olhar triste. O ambiente é abafado. A Penha é sempre abafada. Tanto calor que faz o suor escorrer de sua testa e perocorrer sua longa bochecha. Um paninho? Ela tem. Junto com o Diazepan, o remédio para diabetes, o inibidor de apetite e outras pílulas. “Algumas são de graça, graças a Deus”, suspira. Em todas, todas as suas frases, Deus está no meio. Ou no fim.


Marilene tem quatro filhos. O caçula, de quatro anos, quase lhe tirou a vida no parto. Foi uma operação de altíssimo risco. Duas bolsas de sangue foram necessárias para repor o que tinha perdido. 17 profissionais de saúde foram destacados para a chegada de uma vida. E a luta para evitar a partida de outra. Detalhe: nao tinha ambulância, nem leito para atendê-la. Nem imagino como ela conseguiu dar a luz e sobreviver…


Marilene é mãe solteira. O pai, quando soube que estava grávida, fez como todo homem covarde e a largou. Por causa da obesidade mórbida, ela ficou oito meses sem menstruar e só percebeu a gravidez no quinto mês de gestação. Os filhos são saudáveis. Ela não. As manchas escuras na pele mostram uma pessoa viciada em comida. “A comida é a maconha do gordo”, sentencia. “Como e muito quando estou triste”. Talvez, exagerado, me perguntei quando Marilene esteve alegre…


Marilene espera por uma cirurgia de redução de estômago há 12 anos. Credita nela sendo a salvação de sua vida. Está na fila junto com outras 5 mil pessoas obesas só no estado do Rio.


Admite que tem medo de morrer.


Mas ela não desiste. Com sua fé irretocável, tão grande quanto seu corpo, ela segue seu caminho cercado de preconceitos, falta de estrutura dos hospitais públicos e tolida como cidadã. Não há espaço para os muito gordos na sociedade. Quando o tema é inclusão social, eles estão um patamar abaixo dos deficientes, por exemplo. Pensam que ser gordo, como ela, é sinônimo de relaxamento, preguiça. Marilene hoje vive da aposentadoria como invalidez.


Apesar de todos os problemas, ela esboça um sorriso quando pergunto qual o sonho dela depois que tiver feito a cirurgia


“Poder cruzar as pernas. Não consigo fazer isso. Só quero isso pra mim e já está bom”.


Marilene solicitou a cirurgia num hospital da rede federal em 1999.


O local faz apenas 40 cirurgias de redução de estômago por ano.


Ela quer cruzar as pernas.


Para mim, resta cruzar os dedos.